Foi ontem aprovado em conselho de ministros uma
Proposta de Lei que altera o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) no que respeita ao acesso a elementos protegidos pelo sigilo bancário para instrução de reclamação graciosa.
Como justificação de tal iniciativa legislativa, apresenta o governo a necessidade de simplificação do acesso da administração fiscal à informação bancária com relevância fiscal a qual surge na sequência das conclusões do Relatório sobre o Combate à Evasão e Fraude Fiscais.
O mecanismo legal ora proposto à aprovação da Assembleia da República vem conferir ao órgão instrutor de uma reclamação graciosa a faculdade da averiguação plena dos factos alegados pelo contribuinte em sede de reclamação graciosa, designadamente mediante o acesso aos elementos pertinentes protegidos pelo sigilo bancário, de modo a que se obtenha a mais completa verdade dos factos.
Dito assim até parece que subjaz á iniciativa a melhor das intenções.
Porém é capaz de não ser tanto assim ...
Uma reclamação “graciosa” é aquela que é feita para o próprio serviço ou entidade com competência para a prática do acto de que se reclama – ou seja, o acto errado que o contribuinte pretende ver corrigido – e que por deter essa competência poderá também praticar um novo acto corrigindo o anterior.
Quer isto dizer que caso um cidadão contribuinte que pretenda reclamar “graciosamente” de uma qualquer incorrecção na sua situação fiscal e/ou tributária – vai fazê-lo precisamente para a entidade que terá dado origem a esse erro.
Mas só poderá reclamar – e esta é a “novidade” da nova lei a aprovar – na condição de ver todas as suas contas bancárias vasculhadas exactamente pelas mesmas finanças que deram origem ao erro tributário que pretende ver corrigido.
Resumindo: só pode reclamar se lhe “devassarem” as contas bancárias.
Note-se que, para o efeito, as suas contas bancárias hão-de ser todas aquelas em que figure como titular, como co-titular, ou relativamente às quais tenha poder de movimentação ainda que não sejam “suas”.
Toda a gente sabe que o governo gosta mais de dinheiro do que “macaco de banana”. Mas num estado de direito, (mesmo) as finanças hão-de ter limites na sua actuação.
Ora o conteúdo desta iniciativa tem muito que se lhe diga, designadamente em termos de legalidade e de constitucionalidade.
1. A “devassa” das contas bancárias é abusiva no momento em que com ela se pretenda dissuadir os contribuintes de reclamar graciosamente, ainda que tenham sido injusta, ilegal e efectivamente prejudicados.
2. Mas também é abusiva na medida em que condiciona a correcção de um erro que é da única e exclusiva responsabilidade dos serviços da administração tributária.
Assim sendo – e porque não há nenhuma razão para considerar as finanças mais “honestas” do que todos nós – não será de estranhar que a “fazenda pública” e os seus “esbirros” comecem a “embirrar” com quem lhes apetecer, provocando deliberada ou “informaticamente” erros na situação fiscal dos contribuintes de modo a que estes se vejam obrigados a reclamar, “espiolhando-lhes” depois as contas bancárias até à exaustão, ou então se calem e prefiram “aguentar” o prejuízo ... assim aumentando a receita.
É evidente que isto se pode repetir vezes e vezes sem conta com todos os contribuintes e com os mais diversos valores ...
3. Por outro lado, uma reclamação de um contribuinte pode atingir a o segredo bancário de um terceiro que nada tenha a ver com a situação fiscal do primeiro. Basta que ambos tenham, por qualquer razão que não seja uma “economia comum”, contas conjuntas.
Com que direito pode a administração fiscal violar a esfera privada da vida pessoal de cada um, à procura de indícios de eventuais prevaricações fiscais de um terceiro contribuinte?
4. Há acrescentar que todo este trabalho de “detective fiscal” será feito sem qualquer controlo judicial no que toca à sua legalidade e à tutela de excessos e desmandos administrativos.
Ou então prever-se-á um controlo meramente administrativo levado a cabo pela própria administração fiscal que, como é sabido, segue, em matéria de “habeas corpus” fiscal o princípio “in dúbio pro fisco”.
Resta ao contribuinte ir para tribunal “esperar” a tutela judicial dos seus direitos violados sabe-se lá para quando e com que efeitos – mas com isso ficando na “lista negra” fiscal, o que levará o fisco a “enganar-se” posteriormente mais vezes, pois quem vai para tribunal é porque tem “culpas no cartório”…
5. É muito curioso toda a celeuma que rodeou as “escutas telefónicas” e a preocupação com o seu controlo judicial e “limitação” na utilização – quando se sabe que foi (também) através delas que se conseguiram apurar inconfessáveis crimes e envolvidos.
Porém, dá a impressão que “o que é bom para as escutas telefónicas não é bom para o segredo bancário”: Assim, toca agora a vez ao “segredo bancário” de passar, também ele, pelas “ruas da amargura”, “sem rei nem roque”, às mãos de diligentes inspectores de finanças …
Com as coisas neste pé, resta ao “indiferente” cidadão (àquele a quem inexoravelmente se aplica a lei …) ficar à espera que, um dia destes, seja “diligentemente” inspeccionado um “alto político” de um qualquer partido “no” poder ou “do” poder e isso “dê barraca” e “incómodas” revelações…
Aí voltará a discussão sobre a necessidade da existência de “segredo bancário” ou, pelo menos, que esse segredo tenha regras que não as ditadas pelo arbítrio das finanças.