Tradicionalmente os portugueses comprazem-se a coscuvulhar a vida dos outros. A coscuvilhá-la e a comentá-la junto ao corêto. Adoram falar dos outros, esmiuçar a sua vida, dizer bem e maldizar.
Às vezes usam até a cusquice como arma de arremesso: ao revelar vícios privados, procuram acicatar as públicas virtudes para conseguir uma condenação ou uma vantagem.
Às vezes, os mais maldizentes seriam os merecedores de maior crítica. Mas a sua torrente de maldizer impede qualquer reacção - e transforma a maledicência em verdade. "Bem prega S. Tomás ..."!
Por isso, talvez o ditado "quem não deve, não teme". Habituados a verem-se expostos no pelourinho, os portugueses preservam-se de qualquer erro, de qualquer falha, trefugiam-se na inacção, para assim melhor sobreviver à exposição e à censura pública.
O governo também utilizou essa táctica para atingir os sesu intentos: criou as listas de devedores ao fisco e à segurança social, julgando assim que expondo os devedores ao opóbrio público conseguia pagamentos mais rápidos.
Porém, como qualquer bom moralista, pretende que a regra se lhe aplique também. Mas, evidentemente, de modo a não revelar as suas fraquezas. E, como exemplo, eis a lista de credores do Estado de onde constam apenas dez dívidas e três entidades (sendo que uma delas é o próprio Estado).
Agora com o novo regime de compras públicas, o governo entendeu que expor os serviços ao julgamento público seria a melhor forma de evitar despesas, revelar "despesismos" e arranjar "bodes expiatórios".
Em vez de procurar institucionalizar uma cultura, valores e ética de gestão, de modo a que os negócios públicos sejam conduzidos com o critério e rigor com que deveriam sê-lo - e, no mínimo, com os critérios que quem gere a sua própra casa - preferiu atirá-los para o julgamento na praça pública.
E a praça pública é o pior julgador que existe. Porque é ignorante, porque julga sem critérios objectivos, porque julga emocionalmente e não racionalmente, porque desconhece a razão e fundamento dos factos, porque é populista e demagógica, porque, geralmente, é arruaceira e gratuitamente vingativa.
Criada a obroigação de publicitação das aquisições por ajuste directo na internet - no site
www.base.gov.pt - já começaram as
notícias sobre os gastos públicos.
E aí se revela, certamente com pormenores adicionais - "quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto" - que
o gabinete do primeiro-ministro, por exemplo, parece apostado em levar boa parte do “stock” do vinho tinto da Quinta do Vale Meão, um Douro já profusamente usado por José Sócrates durante a presidência portuguesa da União Europeia. Desta feita, no passado dia 2 de Setembro, foram adquiridos 6840 euros em garrafas, da colheita de 2006, "para oferta a entidades estrangeiras", directamente ao produtor Francisco Olazaba. Sucede que a compra pode ser um privilégio do primeiro-ministro. A Garrafeira de Campo de Ourique, uma loja-referência, em Lisboa, questionada sobre o preço da garrafa, respondeu que o Quinta do Vale Meão 2006 só começará a ser comercializado na segunda quinzena de Novembro.
É evidente - para quem saiba - que é protocolar fazer ofertas a entidades estrangeiras. Todos os governos de todos os paises o fazem.
E quando se oferece - dizem as boas maneiras, para quem sabe - oferece-se o que é bom e não algo que nos indignifique.
Por isso o julgamento público desta aquisição, partindo do desconhecimento e da razão dos factos e apenas iluminado pela censura da "praça pública" pode ser enviesado.
Mas não é mau que o primeiro ministro coma também um pouco do fel que semeia ...
Especialmente se as 6840 euros em garrafas, da colheita de 2006, do tinto da Quinta de Vale Meão servirem não apenas para ofertas potocolares a entidades estrangeiras, mas para agraciar o pessoal do gabinete ou colaboradores mais dedicados ou entidades terceiras a quem o governo entenda dever dar umas "prendas" ou para regar umas jantaradas de trabalho ...
Não é que isso não seja (ainda ou também) possível. Só que então isso já não corresponde à justificação pública apresentada para a aquisição.
E então pode-se fundadamente questionar se a justificação pública (porque publicitada) para a aquisição dos vinhos foi apenas uma desculpa ou um pretexto para uma compra destinada a outros fins ...
(Nota final: será que com esta exposição pública como preferencial fornecedor primoministerial, Francisco Olazabal poderá inserir nos seus rótulos:
By appointment of his Excellency the Prime Minister?)