A Dona da Rua Há uma figura muito do nosso imaginário que é a da "Dona da Rua". A Dona da Rua é uma gaja acima dos 60, mas a querer sempre aparentar trinta-e-muitos, com um penteado que já só se consegue nas M'dinas do Magreb e em certos cabeleireiros de bairro: oxigenado, platinado, e gloriosamente sustentado por uma lata inteira de laca. A Dona da Rua tem gosto por tudo o que brilhe: pulseiras vistosas, pedras coloridas, à mistura com uns quantos quilates de ouro. Geralmente, costuma ter mais anéis do que dedos. Veste de leopardo, com o típico bom gosto da Clara Pinto-Correia, e passa mais tempo nas esplanadas com vista para o seu pequeno mundo do que a ler etiquetas de preços de saldo de sapatos de salto extra-alto, embora as frequente muito, elas, etiquetas, e os próprios saltos. A Dona da Rua é um Gato de Schröndiger: todas as pessoas do bairro sabem que ela subiu na vida a abrir as pernas para um cavalheiro com posses, mas ignoram sempre a data exacta em que as começou a abrir. Em contrapartida, toda a gente conhece o dia certo em que lhe pôs a tampa do caixão por cima, e fez a transferência da pensão para a conta própria. Eu gosto muito de Donas da Rua. As Donas da Rua têm uma estrutura psíquica muito própria, que é a de, depois de se terem tornado em Donas da Rua, tentarem convencer os restantes vizinhos de que aquilo sempre foi assim. Para as Donas da Rua, como para os povos primitivos, o conceito de História não existe. Não têm Passado, e desconhecem a Escrita, excepto a da assinatura do cheque da conta conjunta com o "seu" defunto. Toda a narrativa da sua vida se inscreve no Discurso Mítico. Há um axioma da Sociologia que diz que a estrutura psíquica de uma Dona da Rua é diferente da estrutura psíquica de um Licenciado. A Dona da Rua acredita mais em deitar cartas do que em Relatórios da O.C.D.E.; é mais opiniosa do Coração do que certificadora de raciocínios através da Álgebra de Boole; prefere a Raiva, o Rancor, a Inveja, a Vingança a qualquer das linhas da Declaração Universal dos Direitos do Homem; a Dona da Rua sabe, e pratica -- e é a única prática intuitiva, embora empírica, que nela se assemelha à Ciência -- que, na Teoria da Comunicação, o peso do Discurso se divide em três parcelas, desiguais, 55% para a Expressão Facial, 38% para o Tom de Voz, e só 7% para o conteúdo das Palavras: por isso, ela faz tantas boquinhas na esplanada, ao colocar a camada de batôn, dos dez em dez minutos, os esgares; por isso, ela fala sempre num tom de desdém ou de venha-mais-uma-torrada, e só comenta as notícias das intrigas dos varais de pendurar lençóis dos prédios ao lado. Esta noite, a Televisão do Estado, paga por mim, e por si, contribuinte leitor, perdeu uma hora e meia a entrevistar uma Dona da Rua. Por estranho que pareça, e para muita boa gente aqui, que me toma por especialista no Sr. Sócrates, a verdade é que eu não sou: nunca consegui estar mais do que 2 minutos a ouvi-lo, e, mesmo assim, entre "zappings", obstinados e abruptos. Hoje, pelo contrário, dei-me ao luxo de lhe dedicar 10 minutos, aliás, 10 minutos, 12 segundos e algumas décimas de segundo, como diria, o Chanato Constâncio, e penso que não foram minutos desperdiçados, porque eu sou um verdadeiro apreciador de Donas da Rua. Mais: acho que elas fazem parte do nosso património genuíno, tal como o Chulo, tirar macacos do nariz, eructar em público, o Uivo do Adepto Futebolístico, ou a Voz timbrada da Peixeira. Uma coisa falhou em Sócrates, todavia: não esteve à altura da Incompletude, de Gödel, e, portanto, não pode ascender àquela situação em que poderia ser, como no Paradoxo de Richard, simultaneamente Dona da Rua e Licenciado. O terreiro em que se move é muito baixo, e a tômbola acabou por fazê-lo definitivamente cair para o lado de... Dona da Rua. Para o Sr. Sócrates, de Vilar de Maçada, Alijó, alguém, um dia, terá de vir explicar que uma Licenciatura, como um Mestrado, como um Doutoramento, não são meros papéis com carimbos de autentificação, mas são subtis transformações cognitivas, e da espacialidade do Pensamento, ou seja, meta-estruturas, que obrigam a que a emissão de certos raciocínios, como o decorrer de certas argumentações, obedeçam a uma organização muito específica, que, apesar de indizível, é formalmente identificável. A Dona da Rua, para se convencer, e convencer os outros, prefere repetir muitas vezes a mesma palavra, variando a entoação da voz, e enformando-a numa mesma estrutura narrativa, com variantes apenas comparáveis às "nuances" das raízes do seu cabelo, em vez de encontrar o Silogismo Fatal. Glória Fácil. Ora, a cabeça do Sr. Sócrates enferma de não ter sofrido as metamorfoses cognitivas que identificam um licenciado de um não-licenciado, e tudo o resto são papéis, e ele adorou vir expor isso a público, perante uma plateia ávida de escândalo. Mas não houve escândalo, apenas "parole, parole", como cantava a outra, e vazias. Para mim, que prefiro Donas da Rua a Licenciados, foi um tempo bem gasto. Provou-me que a retórica do caracacá só conseguia despertar esgares de gozo mal-disfarçado nos jornalistas -- parabéns para ambos!... -- e suponho que numa certa parte da Plateia Portuguesa. O problema central não está nesses esgares de gozo, ou nas gargalhadas da minoria, está, sim, no reconhecimento que a Grande Maioria de um Povo pouco habilitado possa ainda conceder ao Sr. Sócrates, já que ele se lhes assemelha muito ao perfil do gajo-que-deu-o-golpe-do-baú-que-todos-gostariam-de-ter-dado-mas-não-tiveram-a-sorte-dele. Portugal é um estádio, e o Boneco de Lata de Bilderberg tem a sua claque, suponho que sejam os No Vagina's Boys, mas não posso assegurar, porque sou pouco entendido em Futebol, ao contrário das Donas da Rua, que ADORO. Até podia acontecer que o natural de Vilar de Maçada não tivesse logrado dar o salto cognitivo do Licenciado, mas houvesse alcançado o Grau Subtil de Habilitado Político, aquele "je ne sais pas quoi", a que nós chamamos o Faro dos Grandes Estadistas. Pobremente, nem uma coisa, nem outra. É um mero provinciano, despido de discurso, vestido de trapelhos enfatizados, e reduzido, pelo nível da suspeita, àquilo que de pior lhe podia acontecer em Portugal, que foi fazerem-lhe entrar a Vaidade directamente no anedotário do Senso Comum. Ao fim, depois de lhe agradecerem, ainda disse "ora essa", expressão que eu já não ouvia, desde os tempos do Sr. Américo, a quem a minha avó comprava queijo picante, e já lá vão "iânos" e muitos "concêlhus", como ele diz. Amanhã, aliás, já ontem, todos os taxistas, as operadoras de caixa do "Carrefour", os seguranças das bombas de depois-da-meia-noite terão um novo MBA, uma nova Pós-Graduação a acrescentar à Imensa Anedota Sócrates. É a única coisa transfinita em Portugal, o Sarcasmo, e, nisso, ele, país, cultura, modo de estar, é impiedoso. Costuma dizer-se que quem com ferro mata com ferro morre. À laia de final, ou de Consolação Menor, quando Bilderberg oscilou entre este Boneco de Lata e o Expansivo Santana, eu sei que teve as suas razões: o Santana, que, apesar de todos os seus defeitos, possui o tal "faro político", sofria de uns "ataques", ou seja, podia dar-lhe para cometer alguma imprevisão, que pusesse em causa o... "programinha" estipulado para Portugal. Em contrapartida, o Merceeiro de Vilar de Maçada assegurava tudo: ser Monótono, Vazio, patologicamente obstinado, Vaidoso, e ter a tal válvula de escape, muito complicada, como tinham os "Harkonnen", de "Dune": um passo em falso, puxavam-lhe o tampão, e o sangue jorrava até ao fim... Preferiram, pois, uma estrutura mental de bicha típica, subserviente, e a quem se podia desligar o oxigénio, a qualquer momento. Esqueceram-se de que lhe podiam pregar uma rasteira, no nível rasteiro das rasteiras à portuguesa, e o ruído dos bonecos de lata a cair no chão é uma coisa realmente do "Heavy-Metal", deus meu, até eu, um Estóico, e mesmo com os ouvidos tapados, e já a zarpar para outro canal, fiquei com sincera pena...
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Sócrates ou a importância de se chamar engenheiro"
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