Vale a pena ler…
…as declarações de voto (aqui e aqui) da Conselheira Maria Lúcia Amaral – pela simples razão de que sabe (profundamente) do que fala…
Aqui fica parte da declaração de voto que apôs ao Acórdão de hoje do Tribunal Constitucional n.º 575/2014:
…
3. Na sequência deste [Acórdão n.º
862/2013], o legislador decidiu reduzir o montante de pensões já
em pagamento através da imposição da [presentemente em juízo] «contribuição de
sustentabilidade». Ao mesmo tempo, aumentou a taxa do IVA e as quotizações dos
trabalhadores para o sistema previdencial.
É certo que o fez num quadro de acentuada incerteza.
Não teve em conta, na determinação da «contribuição de sustentabilidade», as
carreiras contributivas de cada pensionista; remeteu para diploma futuro a
fixação de uma sobretaxa, que se diz vir a ser transitória, mas que agravará,
numa dimensão que ainda se não conhece, as condições das pensões de certo
montante, visto que acrescerá à presente «contribuição». Previu para o futuro
um sistema de atualização de pensões que presumivelmente substituirá aquele que
é definido pelos regimes agora vigentes, mas que só é identificável através de
critérios genéricos e imprecisos, que por vezes replicam fatores já tidos em
consideração. Se tivermos em linha de conta os documentos oficiais que
antecederam esta tomada de decisão [de redução de pensões], ficaremos a saber
que ela corresponderá apenas a um “primeiro passo” da “reforma” em “ordem à
garantia da sustentabilidade do sistema previdencial”. Mas ficamos sem saber
quando, e como, se darão os passos seguintes. Finalmente,
last but not least, tudo isto foi
decidido (como se diz no presente Acórdão) num processo deliberativo
curtíssimo, que não coenvolveu o estudo e (ou) o debate que uma questão como
esta, que interessa à sociedade portuguesa no seu todo, por certo exigiria.
Contudo, estas são considerações que motivarão, para
quem as perfilhar, uma atitude de censura cidadã.
Mas não me parece que sejam suficientes para fundamentar uma censura
jurídico-constitucional.
4. O Tribunal não pode, com efeito, marcar a agenda da reforma do nosso sistema
previdencial. Não lhe cabe decidir se essa reforma se fará de uma só vez ou se
se fará de modo faseado. Dizendo o legislador que a medida que tomou se integra
numa primeira fase dessa reforma, não deve nem pode a jurisdição constitucional
decidir que assim não tem que ser. Como não pode o Tribunal determinar o teor
dessa reforma, identificando as medidas que devem primeiro ser tomadas e as
outras, que a elas se seguirão. Por razões de praticabilidade, não pode o
Tribunal exigir do legislador que o encetar de uma qualquer mudança sistémica
se faça tendo antes do mais em
conta as carreiras contributivas de cada contribuinte-beneficiário, ou tendo em
conta as posições recíprocas de todos os grupos de pessoas que foram sendo
abrangidos pelos diferentes regimes, que se sucederam no tempo, relativos ao
modo de cálculo das pensões. Em suma, não pode o Tribunal, pela sua natureza de
jurisdição, impor ao legislador a
sua própria visão do que seja uma reforma
justa do sistema.
E não o pode fazer por duas ordens de razões, que,
estando intimamente ligadas, merecem contudo ser distinguidas.
Em primeiro lugar, não pode o Tribunal impor ao
legislador a sua própria visão do que seja uma
reforma do sistema público de pensões. O problema é de tal
complexidade técnica que pressuporia, sempre e em qualquer circunstância, a
necessidade de fazer escolhas e de tomar decisões especialmente difíceis. Num
contexto de incerteza, quer quanto à evolução dos fatores demográficos e
económicos, quer quanto à própria repercussão que medidas reformadoras poderão
vir a ter sobre essa mesma evolução (dada a estreita ligação existente entre a
receita e a despesa do sistema público de pensões e a própria economia), a
complexidade técnica dos problemas envolvidos, que sempre existiria, torna-se
ainda mais intensa. Ora, para enfrentar esses problemas não pode estar o
Tribunal, pela sua própria condição, preparado: não tem para tanto vocação
funcional; não está para tanto epistemicamente apetrechado.
Mas além disso, e fundamentalmente, não pode o
Tribunal impor ao legislador a sua própria visão do que seja uma reforma justa do sistema público de
pensões. Não tenho dúvidas de que muitas das objeções feitas no Acórdão quanto
à solução encontrada pelo legislador são razoáveis e de boa-fé apresentadas.
Mas o ponto é justamente esse: perante a existência de diferentes conceções
razoáveis quanto ao que seja, quanto a essa reforma, justo ou injusto – e
perante a discussão aberta no espaço público entre essas diferentes conceções
razoáveis – é ao poder
legislativo, e não ao poder judicial, que cabe tomar a decisão quanto ao
caminho a seguir. Não é para mim aceitável que um juízo eminentemente moral
sobre a justiça de uma tal reforma caiba a uma maioria formada no seio de uma
instituição de índole jurisdicional. Deste modo, segundo creio, não se melhora
a qualidade da deliberação pública. Pelo contrário, degrada-se essa qualidade,
uma vez que se nega aos cidadãos o direito a ter uma palavra a dizer sobre tão
delicada matéria.